terça-feira, 20 de outubro de 2009

Uma Ilha Movida a Energia Renovável

Do Valor Econômico

O ator Viggo Mortensen, o rei Aragorn de "O Senhor dos Anéis", é um apaixonado pela ilha na Dinamarca onde viveram seus avós. "Não há nada mais lindo do que chegar ali de ferry olhando o mar e o céu", disse uma vez, ao criticar o projeto de uma ponte que ligaria a ilha ao continente e "destruiria sua beleza natural". O lugar lembra mesmo o Condado dos Hobbits com casas fofinhas, plantações de abóboras e gramados perfeitos. Mas, em vez de elfos, o que salta dali quando a bruma se desfaz é a visão de dez imensas torres eólicas fincadas no mar agitado. Samsø é bem pragmática. É a primeira ilha do mundo a alegar independência energética e dizer que funciona com 100% de energia renovável.

Na verdade, há um truque nisso. Toda a eletricidade da ilha é produzida por 11 turbinas eólicas de 1 MW espalhadas em três pontos diferentes do território. Mais de 70% do aquecimento das casas e da água vêm de quatro usinas movidas a palha e lascas de madeira, e muitas casas têm painéis de energia solar no teto. Mas as três grandes balsas que ligam a ilha ao continente e carros dos habitantes são movidos a diesel ou gasolina. Os moradores dizem que compensam este buraco nada limpo no seu projeto com a energia gerada pelas turbinas eólicas espetadas no mar, a 3 km ao sul. Essa energia é "exportada" ao continente. Por este artifício eles alegam ter cortado em 140% as emissões de CO2 de Samsø (pronuncia-se Samsoe). Ou seja, compensam o que emitem nos escapamentos com o que vendem de energia limpa ao continente.
Samsø fica a quatro horas de Copenhague. Gastam-se umas duas horas atravessando o continente e o restante dentro daqueles grandes barcos que cortam o Mar do Norte. As águas são ameaçadoras. Quando os vikings navegavam por aqui, Samsø era parada obrigatória em sua rota. Agora virou tour de políticos, cientistas, diplomatas, estudantes e jornalistas do mundo todo, que vêm aqui avaliar a gradativa independência dos combustíveis fósseis, meta que a Dinamarca toda pretende conseguir em breve. São quase 4 mil curiosos ao ano que aportam em Samsø para ver como se vive apenas com energia dos ventos, de palha, do sol e até de dejetos de porcos.

Esta espécie de safári energético tende a crescer em dezembro, quando o governo dinamarquês organiza a CoP-15, a conferência do clima das Nações Unidas, e deve fazer da ilha seu show-room de energias renováveis. O país já tem 27% de sua eletricidade produzida por fontes renováveis e facilmente deve atingir a meta de ter pelo menos 30% de sua matriz energética vinda de fontes limpas em 2025. O cardápio inclui vento, lixo, biomassa, geotérmica e sol.

A fama de Samsø começou em 1997, quando o Ministério da Energia lançou um concurso para ver qual região do país apresentaria o plano mais realista e factível de transição para energias renováveis. Eram ecos do trauma de 1973 - na primeira crise do petróleo, a Dinamarca era 95% dependente de energia importada. A ilha, de 114 km2, até então conhecida pela sua produção de batatas e morangos, ganhou o concurso.

Os 1.400 moradores se empolgaram e foram pesquisar preços de turbinas eólicas. Em 2000, começaram a instalar 11 torres de 1 MW em três regiões. Os moinhos de vento em terra já produzem eletricidade suficiente para a ilha toda. O maior passo foi investir nas turbinas no mar, que custaram € 33,3 milhões. "Ninguém faz um investimento destes só para se divertir", diz, no site do projeto, o fazendeiro Jorgen Tranberg, proprietário de uma turbina de 1 MW e de meia turbina offshore, num investimento de US$ 3,2 milhões. Ele conta que hoje observa os preços do leite e os da energia. "Eu não aconselharia ninguém a colocar todo o seu dinheiro em energia renovável. Mercados e subsídios mudam da noite para o dia", diz. "Quando começamos, ninguém estava interessado em CO2. Agora nos atualizamos umas dez vezes por dia em mudança climática."

O projeto de tornar a ilha de Samsø renovável teve investimentos de € 60 milhões. O poder público municipal colocou € 17 milhões em cinco das turbinas que estão no mar. Mas o que o município ganha com a venda de energia tem de ser reinvestido em futuros projetos, pois a lei dinamarquesa não permite que os governos municipais lucrem com a produção de energia. O resto, € 43 milhões, são investimentos privados de fazendeiros, cooperativas ou de uma empresa de energia, a NRGI.

Umas 300 casas mais afastadas dos vilarejos de Samsø investiram em sistemas próprios de aquecimento. Há um interessante cruzamento das fontes. Na maior usina de aquecimento de água, inaugurada em 2002, 80% do calor vem da queima de lascas de madeira e 20% de uma fileira de placas de energia solar que ocupa 2.500 m2. Não há funcionários na instalação. "A usina funciona automaticamente, quando há demanda de energia", explica Jesper Kjems, o porta-voz do projeto. Enquanto ele fala, dos braços de escavadeira começam a deslizar pelos trilhos do teto. Chegam até a pilha de restos de madeira, apanham uma boa quantidade, levada até a esteira. De lá, os farelos de madeira seguem para a caldeira e as pás da escavadeira retornam à posição inicial. A lenha é o resíduo da produção de madeira da ilha.

"Nós não inventamos nada, apenas compramos o que existe no mercado", continua Kjems. "Adaptamos os padrões tecnológicos às condições normais de consumo dinamarquesas". O início de tudo, explica, é ter um quadro político favorável, que irá se traduzir em subsídios - sem eles, diz Kejms, um projeto como este não se viabiliza. Ao investir em uma turbina eólica, por exemplo, um fazendeiro tem dez anos de carência para começar a pagar o empréstimo e garantia de preços mínimos na venda da energia. "O segredo do sucesso é ter metas simples de alcançar e envolver todos os grupos da sociedade."

Há, evidentemente, flancos abertos no objetivo de Samsø de ter 100% de energia renovável em dez anos. Os combustíveis fósseis queimados no transporte são a falha mais evidente. Eles começam a investir em pesquisa de biocombustíveis feitos a partir de sementes de canola, mas aguardam mesmo os carros elétricos. "Nossa intenção é alimentar com energia eólica a rede elétrica para os automóveis", conta Kjems. Outra meta futura é conseguir estocar energia, reduzir ainda mais o consumo e aumentar a eficiência energética.

A ilha não é um paraíso ecológico e tem seus problemas. Um deles é o lixo. A reciclagem também é modesta. Muitos fazendeiros usam agrotóxicos em sua produção. "Queremos estabelecer uma nova meta para os próximos dez anos", diz Kjems. Uma das ideias, por exemplo, é fazer de Samsø uma ilha 100% ecológica. Recentemente Samsø inaugurou a Academia de Energia, uma construção de largas janelas, painéis de energia solar no teto e reaproveitamento de água da chuva nos banheiros. É lá que recebe os visitantes.

A ilha também é lugar de veraneio para moradores de Copenhague. Muitas casas de Samsø tem o nome da família pintado na fachada e tetos feitos de palha. Há plantações de margaridas e abóboras e carruagens bucólicas podem ser alugadas para conhecer Kanhave, o canal construído pelos vikings, ou os belos murais encontrados nas igrejas. A ilha vive da agricultura e do turismo. As turbinas eólicas fazem barulho, mas nada que seja muito desconfortável. Kjems diz que também é mito que pássaros morrem ao bater nas hélices. "Em seis anos, só uma vez encontrei um pássaro morto aqui perto da torre, e não sabemos se foi por causa da turbina ou se foi uma raposa."

Por Daniela Chiaretti, de Samsø, Dinamarca

Matéria publicada pelo Valor Econômico, em 20/10/2009